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SANTO DE CASA NÃO FAZ MILAGRE: O APAGAMENTO DA CULTURA GUARAENSE



Por Henrique Machado (Jornalista, produtor cultural, compositor, percussinista, DJ e ex-conselheiro de Cultura do Guará)

O Guará, cidade satélite do Distrito Federal, é um celeiro cultural pulsante, berço de expressões que vão do reggae ao rock, do rap às tradições populares, compondo uma identidade única que resiste há décadas. No entanto, esse rico mosaico cultural enfrenta hoje um processo sistemático de apagamento, patrocinado pela própria estrutura de poder local, que prefere privilegiar ritmos comerciais e genéricos, como o sertanejo universitário, em detrimento da verdadeira alma da cidade.

Desde os anos 1970, o Guará é sinônimo de reggae, ritmo que ajudou a consolidar a cidade como um dos principais polos nacionais do gênero. O epicentro dessa história é o  Sindicato do Reggae, fundado em 1980 por Nardeli Gifoni, no Setor Bernardo Sayão. Mais que um espaço físico, o Sindicato é um símbolo de resistência, tendo recebido nomes internacionais como Julian Marley, Israel Vibration e The Gladiators, além de ser palco dos principais festivais locais, como o Festival Internacional Sindicato do Reggae, o Festival Ragga Brasil e o tradicional Soundsystem’s Party. 

Bandas e coletivos como Jah Live, Deus Preto, HNG, Batidão Sonoro, Vibração do Cerrado, Bolachões Sound System, Lion Sound (DJ Henrique Lion) e Di-Rocha Soundsystem (DJ Micro 061) continuam a semear o reggae como linguagem de paz, luta e amor universal, mesmo diante da invisibilidade e da escassez de apoio público.

Rock do Guará – atitude, memória e garagem

Se o reggae representa a raiz, o rock do Guará carrega a rebeldia e a contestação. Desde os anos 1980, a cidade é referência da cena underground do Distrito Federal, tendo sido palco do histórico primeiro show da Legião Urbana, realizado no Teatro de Arena do Guará — espaço que consolidou o Guará como um território importante para difusão do rock brasiliense.

Bandas pioneiras como Alta Tensão, Jogo Sujo, Os Cabeloduro e Kaos Klone construíram a reputação da cidade com letras contundentes e atuações em palcos alternativos. Atualmente, grupos como Soultier, Vantablack, Desacato, A Nova Ordem, Prole, Metrópole Abstrata, A Guerra de Sofia, Desonra, The Crawlers, TomaRock,  Patologias Sociais, Macakongs 2099,  MDK e Trampa mantêm viva a chama do rock autoral guaraense, impulsionados por uma presença forte nas redes sociais e por eventos autogeridos. Nomes como Daniel Matos, Luiz Olivieri, Carlos Tavares, Rafael Lobo, André Rocha,  Tati Hell, Renato Leal e Caio Rezende** compõem essa constelação de artistas.

Rap e batalhas de rima: voz da periferia silenciada

A cena do rap no Guará foi historicamente um importante espaço de resistência cultural, social e política. As batalhas de rima na Estação de Metrô do Guará foram palco para jovens e MCs como Mano W, GOG, Cahegi e Sparta expressarem suas vivências, desafios e críticas às desigualdades, criando um diálogo direto e popular.

Apesar da força e importância dessas expressões, o rap local tem sido relegado à invisibilidade institucional, com poucos espaços adequados, ausência de apoio público e exclusão dos circuitos culturais oficiais, reforçando um padrão de exclusão que sufoca o potencial transformador da arte periférica.

Cultura popular viva e ameaçada

A cultura popular guaraense é rica e diversa, expressa em manifestações como o Tambor de Crioula Flores de São Benedito e o Grupo Zenga. Esses grupos preservam tradições afro-brasileiras, danças, cantorias e festas religiosas, mantendo vivas as raízes ancestrais.

A Festa do Divino Espírito Santo é outra tradição emblemática, marcada por procissões, folguedos e celebrações que reforçam a fé e a identidade comunitária. As quadras do Guará, por sua vez, se transformam em espaços de lazer e sociabilidade, onde acontecem as tradicionais festas juninas, com quadrilhas, comidas típicas e brincadeiras que resgatam as raízes nordestinas e a cultura popular brasileira. Contudo, todas essas manifestações vivem o desafio da falta de reconhecimento e incentivo por parte das políticas públicas locais.

 Uma cena múltipla excluída da própria casa

O Guará conta com artistas plásticos, escritores, poetas, duas escolas de samba — Império do Guará e Lobo Guará — blocos carnavalescos, grupos de dança, dezenas de DJs, sound systems e muitos outros agentes culturais. Mesmo com tanta diversidade, esses grupos são sistematicamente ignorados nas programações oficiais, vistos apenas como complementos para ações voluntárias ou eventos cerimoniais, sem reconhecimento ou financiamento adequado.

Uma política cultural que apaga em vez de valorizar

A ausência de um Plano de Cultura e a omissão do Conselho Regional de Cultura configuram um cenário onde a própria identidade cultural do Guará é fragilizada. A persistente priorização de ritmos comerciais e a exclusão dos artistas locais das políticas públicas reforçam um ciclo de apagamento que ameaça o futuro cultural da cidade.

Para que o Guará possa honrar seus talentos e sua história, é urgente a implementação de políticas que valorizem a diversidade cultural local, promovam o diálogo com os artistas e garantam espaço e visibilidade para as manifestações genuínas da cidade.

Porque no Guará, o santo de casa faz milagre sim — o que falta é reconhecimento, respeito e oportunidades.


Comentários

  1. A cultura do Guaraense vem de décadas sendo deixada de lado por falso moralistas sendo discrimainada pelos que tratam o Reggae, Rock e Rap como marginalizados, o que na verdadde trazem em sua letra refrão da verdade da comunidade, a voz que externa o desejo crescente de sermos reconhecidos como idealizadores de benfeitorias e delação contra a banalizacao da cultura. Execelente reportagem, e que reverbere o desejo de nos unirmos para reencontramos os verdadeiros sindicatos do reggae, rap e Rock dentro de.noʻs, mantenha nossa luta Guaraense.

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  2. Tá, mas é show que vc quer ou instalar um museu? Pq inovação se faz necessário!

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  3. O que interessa sós políticos é o sabor delirante do dinheiro no bolso. Cultura do Guará rendeu financiamento? Se não render não tem vez...o negócio é derrubar e construir prédios

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